Boletim Especial n. 43 - 19/01/2021
No Boletim n. 43, Damasio Duval Rodrigues Neto (UFPel) discorre sobre o discurso neoliberal que pacifica conflitos raciais e econômicos ao afirmar que vivermos em tamanha desigualdade é aceitável. O autor demonstra que a pandemia da Covid-19 fortaleceu esse discurso ao pregar o retorno a esse “normal” como o novo objeto de desejo do mundo capitalista.
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A questão étnico-racial nos tempos do discurso fácil: uma epidemia?
Por Damasio Duval Rodrigues Neto
Foto: Invasão do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco ao acampamento Chico Mendes, em julho de 2005. Foto por Dayse Porto. Acervo Organização Terra de Direitos. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/acervo/fotos/acampamento-chico-mendes/22504. Acesso em: 06/11/2020.
Na era do coronavírus, somam-se quase três décadas desde que a literatura em políticas públicas explicitou o uso da linguagem como uma ferramenta política em si, para muito além da visão desse processo somente como um meio de transmissão de mensagens (FISCHER; FORESTER, 1993). Discursos que conseguem romper a barreira do “submundo” dos especialistas passam a ser reproduzidos no cotidiano popular sem maior reflexão. Porém, não deixemos de atentar: discursos políticos são estrategicamente moldados de acordo com a visão de mundo que seus arquitetos pretendem promover.
Sob este ponto de vista, desde a eclosão da pandemia, a grande mídia faz circular, e as pessoas repetem, frases prontas que, embora apareçam no primeiro plano como positivas, por transmitirem mensagens otimistas, prestam-se muito para sustentar o discurso neoliberal que legitima a opressão das minorias étnico-raciais. “Quando tudo isto passar”, “Depois que a vacina chegar”, “Quando voltarmos ao normal” tornaram-se expressões que anunciam planos de retomada da vida como ela corria até meados do ano de 2020. Uma vida normal na qual a absoluta maioria das pessoas é vítima da exploração financeira, Estados nacionais estão sujeitos aos interesses privados de uma seleta elite de investidores e CEOs, e minorias étnico-raciais têm sistematicamente negada para si a possibilidade de uma vida digna. Nada mais importante para o status quo representado por grandes instituições financeiras e veículos de comunicação de massa que garantir um retorno suave ao contexto que lhes tem sido tão conveniente. Se a pandemia poderia ter sido um evento catalisador de mudanças, há de se constatar que os arranjos sociais e institucionais do neoliberalismo se sustentam, moldam-se a novos cenários com impressionante agilidade, e seus representantes trabalham para garantir sua manutenção e aproveitar as oportunidades geradas pela crise.
Após décadas de políticas neoliberais, com retumbantes fracassos nas arenas social e econômica, tanto no Brasil quanto no resto do mundo, todo o corpo político parece comprometido com a “volta ao normal”. O neoliberalismo, que falha em gerar crescimento econômico, e o capitalismo financeiro, que redistribui os recursos para quem menos precisa, desenvolveram-se como animais predadores que se retroalimentam de suas próprias crises. Quanto mais dão errado, mais se confirmam. E, ao confirmarem-se, sustentam-se como formas hegemônicas de organização social e gestão de recursos da sociedade contemporânea. A crise do coronavírus e os clamores pela volta ao normal exacerbam uma confluência de crises, as quais incidem com maior violência e brutalidade sobre os mais vulneráveis e, entre eles, minorias étnico-raciais encontram-se nas posições mais frágeis.
Questões ambientais, especulação imobiliária e interesses econômicos, como a mineração, reservam aos moradores das periferias, na maioria negros, os espaços mais desprestigiados das cidades e as moradias próximas aos pontos de descarte do lixo gerado pela sociedade de consumo, e aos indígenas e quilombolas, a destruição e o roubo de seus territórios históricos. A crise econômica faz com que os mais vulneráveis não tenham acesso ao trabalho digno e que sejam eventualmente levados a acreditar que os seus direitos sociais causam as recessões e crises estruturais ao próprio sistema capitalista. A crise social corrói o tecido das sociedades, promove a não-conscientização das classes e a guerra entre os pobres. A crise do coronavírus veio agregar-se a essas outras crises, as quais nos lembram que o "normal" incensado pelo discurso simplificador não pode ser um objetivo a ser almejado.
A ascensão das extremas direitas ao redor do mundo explica-se em parte como uma resposta reacionária ao que Nancy Fraser (2017) cunhou como “neoliberalismo progressista”, uma expressão aparentemente paradoxal, mas que expressa muito bem o caráter retroalimentador do neoliberalismo e do capitalismo financeiro. Nas primeiras décadas de sua popularização, as políticas econômicas neoliberais conviveram pacificamente e se aproveitaram da ideologia cultural neoconservadora, a qual nega explicitamente a legitimidade das pautas das minorias e de outros grupos sociais organizados; mas uma metamorfose importante do neoliberalismo foi a absorção das demandas de movimentos sociais negros, feministas, LGBTQ+ e outros, pela própria estrutura neoliberal. Assim, os destinatários das políticas de inclusão, entre as quais, no Brasil, destaca-se a política de cotas étnico-raciais nas universidades públicas federais, recebem migalhas do sistema e são admitidos a conta-gotas dentro da estrutura meritocrática das corporações modernas. Ou seja, somente os mais brilhantes e esforçados negros, indígenas e quilombolas acessam o ensino superior. Tudo dentro da mesma lógica de mercado e do individualismo abarcado pelo discurso neoliberal, sem que se mexa em nada nas estruturas sociais que excluem seus pares não tão brilhantes e esforçados (de acordo com os paradigmas dominantes).
A onda reacionária que levou Trump e Bolsonaro ao poder foi uma reação ao neoliberalismo progressista. Assim, sob o engodo do "outsider", da "nova política", a estrutura financeira segue intacta. O ponto central das crises, que é o modelo de redistribuição de riquezas geradas na base produtiva para o topo do mundo das finanças, raramente é questionado nos espaços públicos.
Para promover uma mudança nas fortunas de negros, indígenas, quilombolas, e outros que são discriminados por sua cultura ou por sua aparência, urge-se por uma ampla reorientação da própria subjetividade das populações. Na sociedade de consumo, na qual tudo é efêmero, dificilmente consegue-se instigar nas pessoas a devida reflexão sobre as formas sutis pelas quais o racismo opera, inclusive no quadro do “neoliberalismo progressista”. Diante das metamorfoses do neoliberalismo, mesmo um Trump ou um Bolsonaro funcionam como meros ritos de passagem, interregnos entre uma ou outra expressão do discurso neoliberal. Se "derem certo", são legítimos capitalistas conservadores; se "derem errado", são outsiders truculentos - e de qualquer forma, a estrutura do capitalismo financeiro se mantém.
Se uma pandemia é caracterizada como a disseminação global de uma doença, enquanto o surto regionalizado é uma epidemia, podemos dizer que, mesmo que as influências políticas externas que favoreceram a popularização dos discursos reacionários no Brasil sejam amenizadas, como sugere a derrota eleitoral de Trump, a epidemia do racismo segue como uma mazela definidora do nosso país, raramente discutida de forma ampla e aberta.
Damasio Duval Rodrigues Neto, mestre em Administração Pública pela Universidade Federal de Pelotas, servidor Técnico Administrativo em Educação, lotado no Núcleo de Ações Afirmativas e Diversidade da Universidade Federal de Pelotas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6316858388287922.
Referências:
FISCHER, Frank; FORESTER, John (Orgs.). The argumentative turn in policy analysis and planning. Durham, N.C.: Duke University Press, 1993.
FRASER, Nancy. From Progressive Neoliberalism to Trump and Beyond. In:American Affairs, vol. 1, n. 4, 2017. Disponível em: https://americanaffairsjournal.org/2017/11/progressive-neoliberalism-trump-beyond/ . Acesso em: 13/10/2020.
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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre a questão étnico-racial em tempos de crise que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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